O "Arcane" se passa no início dos anos 1980, em um mundo onde algumas das principais figuras conhecidas não existiram. Bruxos das Trevas são rapidamente contidos pelas autoridades que adotam uma política de tolerância zero ao uso das Artes das Trevas, e alguns bruxos e bruxas ainda se mostram vigorosamente contra a imposição do Estatuto Internacional do Sigilo em Magia. Contudo, protestos antes pontuais acabam se tornando uma preocupação, especialmente após um linchamento público injusto ocorrer com um bruxo. O novo Ministro da Magia, Faustis D’Abo, gera divisões: alguns o criticam por sua falta de ação frente aos protestos, enquanto outros defendem sua abordagem de reprimir os conflitos e recomeçar.
Vagão dos Texugos
Aproveite para se divertir com os doces e salgados! Se desejar, coloque suas malas nos bagageiros do vagão e corra para pegar os assentos que há mesas dobráveis junto com elas.
ㅤㅤEmbora a ruiva se empenhasse para não demonstrar o incômodo ou fingir indiferença, a rejeição doía. E mesmo com todo o esforço depositado - que por vezes beirava a dissimulação -, a jovem Burns ainda não havia aprendido a lidar com aqueles sentimentos. No final, o resultado era quase sempre o mesmo. Mais uma noite em claro, encarando o teto do quarto, martelando incessantemente as palavras cortantes que sua mãe lhe dissera. Mas dessa vez, a tentativa de pegar no sono beirava a tortura. Cada vez que fechava os olhos, as lembranças daquela noite - que a quartanista tanto tentava esquecer - voltavam a visitá-la. Nelas, a garota se deparava com a figura de Daryl Burns... O corpo do falecido pai, já sem vida, pendurado pelo pescoço sobre o teto do antigo escritório.
ㅤㅤApesar das inúmeras tentivas de Darrien em estabelecer algum tipo de contato, Elizabeth recusou cada uma delas, tornando o caminho até a Estação de King's Cross ainda mais silencioso. Ao chegar na plataforma 9¾, respirou fundo antes de voltar a encará-lo. — Está tudo bem, tio... Só estou um pouco aérea, pois não dormi muito bem na noite passada. — Mentiu descaradamente, antes de desferir um abraço de despedida no mais velho e atravessar a barreira mágica que dividia as plataformas nove e dez. A jovem bruxa chegou mais cedo que o habitual na plataforma, buscando um momento de calma antes do tumulto que viria a enfrentar. Sentada em um dos bancos que ali haviam, ela observava os vendedores e demais funcionários que chegavam para mais um dia de trabalho.
ㅤㅤAos poucos, o silêncio no local era substituído pela agitação dos alunos - ansiosos para mais um ano letivo - e a movimentação que fazia a plataforma ganhar vida. Em outros tempos, Elizabeth seria uma dessas alunas. Mas hoje, o retorno que costumava ser tão aguardado por ela não despertou nenhum tipo de empolgação. Seu semblante, normalmente tão animado, agora refletia uma profunda melancolia. Elizabeth nunca foi do tipo solitária, pelo contrário, era comum vê-la rodeada por amigos ou companheiros de casa, mas sabia que ainda não estava pronta para enfrentar os olhares dos colegas, muito menos para fingir normalidade enquanto aquela dor a consumia. Por esse motivo, a lufana sequer combinou de se encontrar com algum dos amigos naquela manhã, optando em passar as primeiras horas sozinha, curtindo a própria companhia, sem precisar forçar simpatia ou fingir sorrisos. Já estava presa em um emaranhado de mentiras e segredos, não precisava aumentá-lo.
ㅤㅤAo adentrar no vagão da Lufa-lufa, a primeira coisa que Nellie fez foi buscar refúgio em uma das cabines que havia ao fundo, ciente de que costumavam ficar mais vazias. Após guardar a mala, sentou-se no banco que ali havia e retirou um pequeno cantil de dentro de sua capa. Abriu a tampa, levando-o até os lábios emoldurados pelo mesmo batom vermelho de sempre, bebericando o líquido com urgência, aproveitando as sensações proporcionadas por ele. Só mesmo um pouco de Whisky de Fogo para fazê-la relaxar um pouco, concluiu a ruiva. Se fosse pega, ao menos valeria a pena. Na medida em que o líquido descia queimando por sua garganta, Elizabeth se sentia mais à vontade. Mais alegrinha, como gostava de dizer. Por isso, quando a primeira criatura azul passou de relance pelo corredor, não se importou muito, cogitando que fosse algum efeito da bebida, acreditando que talvez tivesse ingerido além do esperado. Mas quando os gritos se iniciaram, despertando a atenção da quartanista, a ruiva livrou-se do cantil. Rapidamente se pôs de pé, sacando a varinha e abrindo a porta da cabine para ver o que estava ocorrendo. Foi surpreendida por um dos pequeninos, que se jogou contra ela, mas foi arremessado na mesma velocidade que chegou.
ㅤㅤParada no corredor, empunhando a varinha feita de salgueiro, se deparou com outro, e outro, e outro... Até entender que o vagão estava uma loucura, completamente infestado por Diabretes da Cornualha. As criaturinhas saltitavam de um lado para o outro, puxando o cabelo e a orelha de alguns discentes. — Que karma filha da puta! — Resmungou a ruiva, enquanto se aproximava. Não havia tempo para sofrência pelo visto, precisava entrar em ação. Sem pestanejar, apontou para um deles e realizou o movimento necessário com a varinha. — Immobilus! — Bradou a ruiva, paralisando um deles. Poderia estuporá-los, seria mais fácil... Mas apesar da pose de durona, era incapaz de feri-los. Ter se tornado uma lobisomem fez com que enxergasse com mais respeito a presença dos demais seres e criaturas que faziam parte do mundo bruxo. Só feria algum deles em casos extremos, quando realmente não possuía outra opção.
Expresso de Hogwarts, Escócia. 1980.
— Porra, ninguém me diz o que fazer. — Bradou Kurt, assim que lhe fora informado, por um dos monitores, sobre a necessidade de permanecer em algum dos vagões destinados a sua Casa.
De fato, ninguém lhe dizia o que fazer. Muitos usariam o mantra centenário que narra “entrar por um ouvido e sair pelo outro” como método de descrição comportamental para o mais jovem Slynt. Mas a verdade é que ele não restringia suas energias ao fazer sempre o exato oposto daquilo que lhe requeriam. Era o seu estilo de vida, por assim dizer. Com isso em mente, Kurt mobilizou-se para além dos vagões que lhe diziam respeito, indiferente a qual Casa eles pertenciam. Sabia, apenas, que não se tratavam dos vagões da Sonserina e, para tanto, já estava satisfeito.
Já no interior da comitiva, assim que atravessara a porta corrediça que possibilitava o tráfego no interior do vagão, Slynt esticou o pescoço para além da janela lateral. Não esperava visualizar seus responsáveis, como era de costume entre a maioria dos alunos, já que chegara à plataforma desacompanhado — nenhuma novidade. Ele encarava o entremeio dos vagões na tentativa de encontrar seu companheiro Ozzy, e tão logo vislumbrou seu corvo de estimação posto acima do arcabouço da comitiva, aguardando a saída. O comportamento da ave não lhe cabia a possibilidade de viajar até Hogwarts confinada em uma gaiola — e seu dono, compreendendo a personalidade de seu animal, o permitia acompanhar o trem pelo lado de fora. Nesse quesito os dois se entendiam, eram até parecidos de certa forma. Afinal, se Kurt fosse um corvo, ele também odiaria gaiolas.
Retardando agora seu foco para o interior do vagão, buscou encontrar alguma cabine livre onde poderia acomodar-se. Teve de atravessar basicamente todo o estreito corredor até que alcançasse o último compartimento do vagão; este completamente vazio. Suas malas foram desordenadamente arranjadas nos apoios superiores, exceto por uma menor que Kurt utilizara para bloquear a abertura da porta da cabine e garantir que fizesse aquela travessia sem importunações. Seu último desejo era passar horas num trem acompanhado por outros adolescentes ainda mais chatos do que ele — por mais impossível que tal possibilidade pudesse soar. Era comum que não medisse seus esforços para permanecer completamente sozinho, ainda que fosse mais comum o empenho ferrenho exercido na tentativa de desagradar aqueles que acabavam se aproximando demais, mesmo que por completo acaso.
Assim que a locomotiva partiu da estação, Kurt ajeitou-se no apoio lateral da poltrona, procurando uma posição que o permitisse descansar. Mas seu descanso foi, lamentavelmente, interrompido antes do esperado. No meio do trajeto, despertou sob o escarcéu promovido pelos alunos mediante gritos eufóricos e desnorteados. Slynt levantou-se do assento e olhou através das vidraças da cabine; os estudantes corriam desgovernadamente. Foi apenas naquele momento em que ele se deu conta de que havia se enfiado no vagão dos lufanos, para variar. Que azar… Do lado de fora do vagão, sobrevoando baixo e ao lado da janela da cabine, Ozzy crocitava em alerta; outro indício de que alguma coisa fora do comum estava acontecendo. Kurt retirou-se da cabine esperando ter alguma dimensão do que se passava no vagão entre os alunos, movido apenas pela própria curiosidade e não por vontade de solucionar o ocorrido.
No corredor, deparou-se com a razão para tanta euforia quando uma criatura azulada voadora atravessou os ares na sua adjacência. No instante seguinte, mais uma passou ao seu lado. E outra, em seguida, mais uma. Quando se deu conta, Kurt notou que todo o vagão estava infestado com monstrinhos que pareciam com os Diabretes da Cornualha de que ele já havia ouvido falar em Hogwarts. No primeiro momento, todos eles pareciam ignorar por completo a existência do garoto quando alvejavam somente os lufanos com suas travessuras. Ainda assim, não tardou para que um dos diabretes voltasse toda a sua atenção para o Slynt. Na ocasião, Kurt não hesitou em conter a pequena criatura com uma das mãos, sentindo-a arranhá-lo como se tentasse livrar-se do agarrão.
— Sai fora, bicho esquisito do caralho! — Ele utilizou a mão que estava livre para abrir lateralmente uma das janelas. Depois, livrou-se do pequeno diabrete que agarrava ao arremessá-lo para o lado de fora do vagão, indiferente com o que poderia acontecer ao animal.
Um engano terrível por parte do jovem bruxo. Não demorou para que os demais diabretes no vagão ficassem furiosos com a ação de Slynt. No curto intervalo de apenas alguns segundos, uma enxurrada de diabretes mobilizou-se na direção da serpente invasora. Havia dezenas deles sobrevoando o entorno de Kurt, puxando o cabelo do garoto e esticando suas vestimentas; ações comuns para aquelas pestinhas voadoras. Ainda que não o machucassem apropriadamente, apenas a maneira como infernavam o sonserino já era o suficiente para que ele perdesse a paciência e desejasse matar todos no interior do vagão.
Mas a algazarra era tanta que Kurt sequer conseguia alcançar a varinha que estava no bolso interno da sua jaqueta para se defender. Pior ainda, era fato que se tentasse alcançar o artefato mágico com tantos diabretes no seu entorno, alguns deles iria acabar roubando-lhe a varinha no ato.
Diante do alvoroço, a verdade era que Kurt não sabia o que fazer.